LOJAS COM HISTÓRIAS

Cinco gerações a mexer nos livros

A LIVRARIA Moreira da Costa, no Porto, pertence desde há cinco gerações a uma família de

Corria o ano de 1902 quando é fundada a Moreira da Costa, hoje a mais antiga casa de comércio alfarrabista portuense


 alfarrabistas que vive para e dos livros. «Livros e amigos poucos mas escolhidos» é o que aconselham os dois proprietários, que garantem gostar mais de comprar do que de vender. Recuando ao ano em que Sampaio Bruno tornava pública a sua Ideia de Deus ou Guerra Junqueiro poetizava A Oração ao Pão, encontra-se um antigo caixeiro, José Moreira da Costa, a tomar de trespasse uma livraria estabelecida no número 48 da Rua da Fábrica, no Porto.

Corria o ano de 1902 quando é fundada a Moreira da Costa, hoje a mais antiga casa de comércio alfarrabista portuense. Desde essa data que a livraria se dedica à «compra e venda de livros em todas as línguas e ciências; pequenas e grandes quantidades, tanto no Porto como na Província. Variado sortido em livros clássicos, literatura portuguesa, romances, poesia, Camoneana, religião, direito e teologia», como se pode ler nas contracapas dos muitos catálogos editados há época pela livraria. Catálogos, aliás, ainda hoje publicados periodicamente.

Em 1927 ocorre o falecimento de Moreira da Costa e é a sua filha, Elisa Duarte da Costa, quem assume os destinos do negócio alfarrabista. Elisa era avó da esposa do actual proprietário que, por sua vez, já conta com a colaboração activa do seu filho, o quinto elo desta cadeia familiar. É com a filha do fundador que a actividade da família vai ter maior projecção e visibilidade. A isso não são alheias as sucessivas participações nas feiras do livro do Porto a partir de 1931. Os anos 30, 40 e 50 são o período de maior renome da Moreira da Costa, como o demonstram as tertúlias, maioritariamente camilianistas, que se realizaram nas próprias instalações da livraria durante essas décadas. Com o desaparecimento da descendente de Moreira da Costa, é na filha desta, Maria Elisa Duarte, que recai a responsabilidade de continuar a tradição do negócio dos livros usados e antigos. Foi com Maria Elisa que o actual proprietário, Ângelo Carneiro, de 55 anos, começou há 30 a aprender o ofício de alfarrabista, que já transmitiu ao filho, Miguel Carneiro, de 28 anos.

«A grande particularidade desta casa é possuir um numeroso espólio livresco da autoria de Camilo Castelo Branco ou acerca dele», conta Ângelo Carneiro. Pelo escritor existe nesta livraria, sobretudo desde a década de 50, um verdadeiro «amor de perdição».

 

A presença de Camilo

Espaço privilegiado para os amantes da obra camiliana, a Moreira da Costa tem no seu interior uma série de bustos de mármore em honra do escritor. A Camilo pertence também a autoria do único livro até hoje editado pela Moreira da Costa, o romance A Infanta Capelista


De aparência exígua à primeira vista, a loja esconde umas verdadeiras catacumbas, nas quais é difícil enxergar as paredes, tal é o volume de livros depositado nas prateleiras. Aliás, pai e filho garantem mesmo não saber quantas obras possuem

que teve uma tiragem de 50 exemplares em 1952. De aparência exígua à primeira vista, a loja esconde umas verdadeiras catacumbas, que se prolongam por baixo do hotel Infante Sagres, às quais é difícil enxergar as paredes, tal é volume de livros depositados nas prateleiras. Aliás, pai e filho garantem mesmo não saber quantas obras possuem. «Na cave há livros os quais não tenho o mínimo conhecimento», afirma Ângelo Carneiro. Entre milhares de relíquias podem encontrar-se os mais variados exemplares literários. Desde a segunda edição dos Estatutos da Universidade de Coimbra, datada de 1654 - um dos mais antigos livros que a livraria possui - ao folhetim A Peidologia, de autor desconhecido, editado pela Tipografia Comercial Portuense, em 1936 - um autêntico ABC de poemas alusivos a esse acto característico das necessidades fisiológicas do mais incauto.

Valente de Oliveira, Braga da Cruz ou António Barreto são algumas das figuras que frequentam a livraria. Mas dos clientes, pai e filho preferem destacar Joaquim Paulino Rodrigues, um ex-alfandegário, ou Araújo Teixeira, um ex-bancário, que todos os dias passam pela Moreira da Costa. Representam o cliente-padrão que vasculha tudo até encontrar alguma coisa que lhe interesse. Ao contrário deste tipo de clientes que não se importa de pagar uma pequena fortuna por um livro (uma revista literária «Orpheu», por exemplo, está avaliada em 500 contos), há uma outra estirpe que prefere livros baratos. Estes são sobretudo os jovens que retiram prazer da leitura, não se importando se têm que o fazer com livros novos ou velhos. «O certo é que em ambos os casos são leitores já feitos, que procuram um suplemento de conhecimento», garante Miguel Carneiro.

Se é verdade que a família Carneiro vive deste negócio, Ângelo Carneiro assegura também que esta actividade não visa o lucro pelo lucro. «Há obras que nós só vendemos quando aparece o cliente certo, porque por muitos livros temos especial carinho que até nos custa desfazer deles», assegura Ângelo Carneiro, que dá o exemplo do obra O Culto do Chá, de Venceslau de Morais, com a qual lucrou algumas dezenas de contos. «O cliente certo é aquele bibliófilo que sabe o que procura e que tem especial prazer em ter determinada obra, não pelo seu conteúdo mas pelas suas características de edição, como o papel de impressão, a tipografia ou, sobretudo, o número da edição», pormenoriza o alfarrabista. O seu prazer está nos dias em que tem que desembolsar elevadas quantias para comprar bibliotecas inteiras.

Depois de alguns anos sem expor na Feira do Livro do Porto, de há cinco anos a esta parte as participações da Moreira da Costa têm sido frequentes. E este ano a livraria volta a participar porque «é uma óptima oportunidade para escoar muitos livros que para um alfarrabista têm pouco interesse, mas que podem ser úteis sobretudo aos jovens ávidos de encontrar raridades por meia dúzia de tostões».

Se pelos livros que vende na feira do livro Ângelo Carneiro não tem nenhum especial apego, o mesmo não se pode dizer da primeira edição de Mas, de Ferreira de Castro, editado em 1921. O alfarrabista exibe o livro como se estivesse a mostrar o seu rebento acabado de nascer e sobre ele conta uma história deliciosa. É que esta obra de Ferreira de Castro, constituída por pequenos contos, tem um último capítulo com um ligeiro picotado. A justificação é simples: «Retrata uma história erótica e para que os pais de família pudessem lê-la e depois impedir que as suas filhas o fizessem o seu recorte era facilitado pelo picotado.»

Moreira da Costa
Rua de Aviz, 30
4000 Porto
Tel. 02 2007524

NELSON SOARES