PÚBLICO * Domingo, 17 Mar 2002 * LOCAL*

Memória da Cidade

JOSÉ MANUEL LOPES CORDEIRO

 

Uma dinastia 

de alfarrabistas

    Completa-se este ano um século sobre a data de fundação daquela que é a mais antiga livraria antiquária da cidade do Porto, a Livraria Moreira da Costa Fundada em 1902 por José Moreira da Costa, a livraria localizava-se inicialmente na antiga Travessa da Fábrica, onde ainda hoje em dia permanece, sensivelmente no mesmo local, não obstante aquela artéria da cidade se denominar actualmente Rua de Avis.

    O seu fundador, José Moreira da Costa, tinha sido caixeiro de uma das mais importantes livrarias da cidade, a Livraria Internacional, na Rua dos Clérigos, pertencente a Ernesto Chardron (1840-1885), que era igualmente uma editora, a qual ficou célebre por ter sido da sua responsabilidade uma boa parte das edições dos livros que Camilo Castelo Branco publicou em vida. Após o inesperado falecimento de Ernesto Chardron, a Livraria Internacional passou para a posse de Lugan & Genelioux, Sucessores, uma sociedade constituída por dois comerciantes franceses, há muito estabelecidos na Cidade Invicta, Mathieu Lugan e Jules Genelioux -, tendo José Moreira da Costa mantido as suas funções na nova empresa. Após o falecimento de Genelioux, ficou como seu único proprietário Mathieu Lugan, mas, em 30 de Junho de 1894, este vendia-a a José Pinto de Sousa Lello, que, juntamente com o seu irmão António, tinha constituído uma sociedade para, precisamente, explorar a antiga Livraria Internacional de Ernesto Chardron. Não foi possível apurar se, nos oito anos que decorreram entre 1894 e 1902, ano em que fundou a sua livraria, José Moreira da Costa manteve na Lello & Irmão as mesmas funções que tinha desempenhado nas duas anteriores firmas.

    Uma vez estabelecido por conta própria, José Moreira da Costa vai dedicar-se não só ao comércio livreiro, mas também às actividades de editor e distribuidor, contando-se em 1916 entre as obras de que a sua casa era depositária - e provavelmente editora -, os "Apontamentos Biográficos do Visconde d'Almeida Garrett". Como alfarrabista [palavra que deriva de alfarrábio, que, por sua vez, procede do árabe "alfarabi", livro velho] - uma designação que, entre nós, é mais corrente do que a de livreiro antiquário - ,José Moreira da Costa organizou vários leilões de livros e publicou inúmeros e apreciados catálogos.

    Após o falecimento de José Moreira da Costa, ocorrido em 1927, seria a sua filha Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias quem ficaria à frente da livraria, a qual altera a sua denominação, passando a designar-se Livraria Moreira da Costa (Filha). Durante quase quatro décadas, até ao falecimento da proprietária em 1965, a Livraria Moreira da. Costa constituiu um pólo de referência cultural na cidade do Porto, notabilizando-se pelas tertúlias que acolhia e pelo seu rico acervo bibliográfico, que suscitava um interesse permanente de todos os amantes de livros.

    Foi durante este período que, correspondendo ao interesse de muitos camilanistas frequentadores da livraria, Elisa Duarte promoveu em 1952 uma edição fac-similada da obra de Camilo Castelo Branco "A Infanta Capelista", numa tiragem limitada a 50 exemplares e destinada quase em exclusivo àquele círculo de amantes da obra do célebre romancista. Este romance era extremamente raro, dado Camilo o ter mandado destruir, quando já se encontrava na tipografia e a impressão ia a meio do 11.º capitulo, tendo o seu enredo sido ligeiramente alterado e aproveitado para um outro romance, que seria lançado em 1812, com o titulo "O Carrasco de Victor Hugo José Alves", numa edição de Ernesto Chardron.

    A razão dessa atitude de Camilo Castelo Branco prendia-se com o facto de ter apresentado a personagem central do romance como filha bastarda de D. Miguel, o que segundo alguns especialistas da sua obra, poderia ofender o Imperador do Brasil, D. Pedro II - que, daquele modo, se encontraria na situação de primo direito de uma infanta ilegítima -, o qual viria a ser recebido pelo escritor nesse ano de 1872, na sua casa de São Lázaro, no Porto. Por outro lado, vistas bem as coisas, também não convinha a Camilo desencadear uma contenda com a Casa de Bragança, a qual poderia pôr em risco as suas pretensões nobiliárquicas, uma vez que desde 1870 vinha travando uma luta pela obtenção do titulo de visconde, embora o pouco sucesso que alcançara nesse desiderato o tivesse impelido, numa tentativa de ajuste de contas, para a elaboração daquele romance.

    Não obstante a tiragem limitada e reduzida praticamente a coleccionadores, a editora de "A Infanta Capelista" foi alvo de uma acção judiciária por parte dos descendentes do autor tornando a edição ilegal e, por ironia, pelo menos tão rara quanto a original, sendo hoje em dia uma valiosa peça bibliográfica extremamente valiosa e apreciada por todos os camilianistas.

    Em 1965, com o desaparecimento de Elisa Duarte, a livraria foi herdada por Maria Elisa Ferreira Dias Gonçalves, sua única filha, a qual se manteve a partir de então à frente do estabelecimento, até que, em 1987, já com idade avançada, constituiu uma sociedade com os seus filhos Rui Gonçalves Isabel de Fátima Gonçalves Carneiro, que também incluía o marido desta, Ângelo César Carneiro. Em 1999, o filho de Isabel e Ângelo adquiriu a quota de Rui Gonçalves, entrando assim para a sociedade e inaugurando a quinta geração de uma autêntica dinastia de uma das mais antigas famílias de livreiros portuenses.